terça-feira, 17 de março de 2009

PROFESSOR DOUTOR

Ao contrário de outros países do velho continente, em Portugal, com o fim da monarquia, em 1910, os títulos nobiliárquicos praticamente desapareceram, dando lugar a outros, nomeadamente os títulos académicos, com o objectivo mais ou menos declarado de demonstrar autoridade e competência profissional a quem o usa. O próprio Governo não resistiu a esta tentação republicana e laica, como se pode ver no Elenco Governamental publicado em pdf na página web da Presidência de Conselho de Ministros, em que aparecem "Dr. Mestre em Direito", "Professor Doutor", etc
A este propósito, não resistimos à tentação de publicar o artigo de Daniel Oliveira, saído no penúltimo "Expresso" (2009.03.07) e cuja leitura aconselhamos vivamente:

PROFESSOR DOUTOR
O melhor resumo do ancestral provincianismo português está na forma como Almeida Santos se referiu a Vital Moreira: "É um Professor Doutor de Coimbra, por amor de Deus!" E na rapidez com que um Professor Doutor de Lisboa, Marcelo Rebelo de Sousa, veio esclarecer que, por amor de Deus, ele nem catedrático é. Portugal é uma República, mas os títulos ainda estão muito bem cotados na feira das vaidades.

Se o acesso à casta está garantido para alguns, outros têm de o conquistar. Pedro Passos Coelho falhou no teste. Disse que na adolescência tinha lido um livro de Sartre que Sartre nunca escreveu. O júri da parolice nacional, o doutor ainda não professor José Pacheco Pereira, veio a terreiro denunciar o escândalo. O país, que lê bulas de medicamentos, indignou-se. No Trivial Pursuit nacional não se tira prazer ou conhecimento da leitura. Ela é o Ferrari que se exibe na praça da aldeia. Portugal tornou-se melómano quando Santana Lopes inventou uma obra de Chopin e literato quando Cavaco confundiu Thomas Mann com Thomas More. Num país encadernado mas sem livros, com imensa cultura de lombada mas sem gosto, habitado por citadores de banalidades e de filósofos espanhóis, a cultura é um penacho.

Gostava que Santana não fosse tão medíocre, que Cavaco tivesse mais mundo, que houvesse mais biografia em Passos Coelho fora do circuito da carne assada e que Vital Moreira não defendesse com tanto empenho todos os disparates deste Governo. Já os seus distintos títulos e a forma como se safam nos inquéritos de algibeira não me aquecem nem me arrefecem. Na vida, conheci muitos idiotas com excelentes bibliotecas e gente muito interessante que apenas fez da leitura uma coisa sua. Num país em que tudo o que conta é a aparência, já cansa ver como a cultura só é assunto quando serve para humilhar o vizinho do lado. Por cá, como se lê pouco, quem cita um livro é Professor Doutor.

Daniel Oliveira


Em tempo: Sobre este assunto leia também este excelente artigo de Ana Rute Silva (Público, 2010.08.16).

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